miércoles, 16 de marzo de 2011




David Viñas: “!Mario, por favor, peruano do Peru, fique quieto!”

(*) Por Jorge Wolff


O autor de Literatura argentina y política y Cuerpo a cuerpo faleceu aos 83 anos, em Buenos Aires, neste mês de março em que se trava uma intensa polêmica sobre a presença de Mario Vargas Llosa na abertura da Feira do Livro de Buenos Aires, em abril próximo. Em 1996, Viñas proferiu a frase acima, a propósito do livro que Vargas Llosa publicara sobre Flaubert, mas que se poderia atualizar e utilizar em relação ao debate atual. Retomo então aqui a entrevista que gentilmente me concedeu naquele ano.*Estudante de pós-graduação em literatura no Brasil com pesquisa sobre a literatura argentina, mantive três encontros com David Viñas nos últimos dias de outubro de 1996. Na primeira tentativa de entrevistá-lo, indicou-me o endereço do Instituto de Literatura Argentina, que então dirigia, no maltratado prédio da Faculdade de Filosofia e Letras – 25 de Mayo, 217 – “à sombra do menemato”, como fez questão de enfatizar horas antes, ao telefone. Cheguei no horário combinado e tive de esperar cerca de duas horas, o que não foi um problema já que estava em busca de vários livros que me rodeavam na biblioteca do Instituto. Viñas estava sendo entrevistado por uma estudante espanhola e, ao fim do depoimento, faz menção de partir. O secretário interfere: “El brasileño...” Durante alguns segundos parece ter esquecido do encontro, mas de repente exclama: “Sí, el brasileño” e chega à mesa onde eu simulava ler, enquanto ouvia o diálogo. Antes mesmo de me saudar, declara: “!Puede insultarme!”... Então pede desculpas e marca novo encontro para o dia seguinte, no café da antiga Livraria Gandhi (Corrientes, 1551). Chego ao café às 15 horas e já me esperava, lendo De la démocratie en Amérique, de Tocqueville. Cumprimento-o preocupado com o ruído, há muita gente no lugar, além de uma pequena loja de discos. Algumas interrupções – cafés, cigarros, vários conhecidos – e o fim da sessão inicial às 16 horas em ponto, quando retorna a estudante espanhola para continuar sua conversa. O derradeiro encontro fica para o outro dia, mesmo horário e lugar, quando é possível falar e falar por mais tempo. Depois, saímos para outro café em outro bar das imediações, enfrentando a rotineira multidão de gente e automóveis do bairro em que nasceu. Cordial, Viñas demonstra desde o início toda a sua conhecida verve e termina a entrevista com o seu “cala-te” ao último prêmio Nobel de literatura. Resgato o depoimento a seguir como forma de agradecimento e homenagem.

Entrevista de David Viñas, Buenos Aires, outubro de 1996.

Jorge Wolff – Gostaria de começar falando sobre De Sarmiento a Cortázar...
David Viñas – Este é um livro que foi composto fundamentalmente por algo como panfletos. Não sei como se lê agora. Qual é a idéia do livro? Diante da coisa canônica desse momento – creio que foi mais ou menos 1970, 71. Não sei se você viu que ele agora se converteu em dois tomos e está como que mais articulado. Era uma versão quase ficcional, polêmica, não convencional, algo assim como um romance crítico, jogando aí uma e outra possibilidade diante do canônico e da chatice. Nem te conto o que era a versão acadêmica que corria e ainda corre um pouco. Tratava-se de dramatizar, usar a idéia brechtiana de desteologizar, dessacralizar a coisa convencional. Não sei ao lê-lo agora o que passa: se soa simplesmente “gritão” ou desproporcionado, ou arbitrário. Entre a chatice e o arbitrário, fico com a arbitrariedade. Pelo menos este tipo não vai estar repetindo o Pai Nosso.
JW – Como você analisaria o Cortázar dos anos 60 agora?
Viñas – Aí está o cânone. A quem canonizaram, sobretudo a partir da zona liberal-conservadora, que aqui ainda detém – como em outros lugares – o poder cultural, sobretudo a literatura. Consabido cânone: Borges, Cortázar, depois aparece Bioy, e pode-se pôr Sábato. Mas em Borges é preciso situar-se. O velho lá sabia! Era um filho-da-puta, mas sabia muito de literatura! O maior risco, ao menos aqui, é lê-lo e ficar “colado”, impregnado de coisas, assumindo uma espécie borgiana. Está bem, dez pontos. Como para Machado de Assis! Está bem, está no céu, conquistou-o. O resto é muito mais discutível. E, no caso de Cortázar, uma coisa que se vai vendo, ao ler os romances, é que são intragáveis. Rayuela... Está bem, contos sim, tem sete contos que te diria de primeira, mas os romances...
JW – Lezama Lima comentou que os dons de crítico seriam maiores que os de criador em Cortázar. O que você pensa disso?
Viñas – Eu, se tenho que reivindicá-lo, voltar a lê-lo ou propor um curso, um trabalho sobre Julio, digamos, uns quantos contos. E Rayuela. Mas se você toma El libro de Manuel, dirá então: - Isto é um disparate, isto me parece quase uma bobagem. Além do mais, creio que foi muito supervalorizado. Não era um romancista, não era alguém que tinha capacidade de manejar um aparato com muito volume. Creio que é alguém que pode fazer um tipo de conto muito bem desenhado, mas criticamente... É uma coisa norte-americana, um tipo que de repente colocou um problema de fronteira. Se vê como funciona, o problema de fronteira vai decifrando toda uma série. Ou seja, descobrir um certo Aleph, propor algo que tenha uma produtividade muito forte. E que lhe siga servindo para decifrar determinado tipo de coisa. Perdoe-me, Julio, lamento, mas não! Algo que de repente me permita dizer: - Este tipo até viu – mas você não viu -, aí dentro há algo que funciona. O Brasil, digamos: Gilberto Freyre, este tipo alguma coisa viu. Não sei como está a polêmica em torno dele no Brasil, mas ele viu um eixo, um Aleph. A partir disso, vamos ver que coisas podemos descobrir. Os sertões, muito bem, você diz: - Este tipo viu o Nordeste. Ou isto já não me serve para nada. É alguém que viu alguma coisa. E no caso de Julio, não poderia dizer isto, não?
JW – Entendi a colocação de Lezama Lima como uma crítica a suas limitações como criador.
Viñas – Provavelmente que não queria dizer-lhe explicitamente: - Julio, perdão, não gosto do que você faz... E note que estou citando isto do Aleph, ou seja, o velho Borges, desde sua perspectiva. Ele acerta precisamente com isso, com um Aleph. Dá uma chave que pode servir para uma série de coisas. No caso de Julio, perdão...
JW – Você situaria o jovem Cortázar entre a esquerda liberal da revista Sur?
Viñas – Não a esquerda, Victoria Ocampo e tudo mais. Note que, a esse respeito, o velho Borges tomava sua prudente distância, não estava superposto com Victoria. Um aleitura possível é de que toda a transposição de “Cartas a Mamá” são cartas a Victoria. Há coisas que, além do mais você pode ir juntando. Note como ele joga quando escreve explicitamente “Julio Cortázar a Victoria” [refere-se a um artigo de 1950]. O que era este personagem para ele, o que era Sur para ele. Quando ele se vai da Argentina em 1951, simplesmente tem uma reação muito conservadora, muito liberal frente a este fenômeno que era – sei lá – o varguismo, digamos, o varguismo, o trabalhismo. O que é isto? O que é este fenômeno? Saíram os negros à rua! O que é esta história? Simplesmente uma coisa reativa: - Eu já não agüento! E se foi. Está bem, era uma alternativa. Creio que está em sua literatura, sobretudo no começo de sua literaura. Está bem, Julio, aprendizagem todo mundo a tem. Mas, no começo do que ele vai produzindo, o que entra em circulação, Bestiario e etc., até os anos 60, o componente antiperonista está aí. E então seguramente se pode confrontar com coisas escritas por ele sobre o peronismo onde explicita – já não através da mediação narrativa - qual era sua reação frente à coisa peronista. Depois, a sedução e o impacto da sedução da revolução cubana. Digo 1959, 60, 61, que era a sedução por esse lado. E com uma presença que ainda segue funcionando, e por muitas razões era inevitável, que era Guevara. Um argentino com o qual se podia identificar – ele e qualquer um – te diria, polemicamente, sem objeções. O mundo da utopia, etc., etc. O descobrimento da coisa revolucionária e da América Latina desde Paris. Aí a proposta é o cruzamento com Régis Debray. Ou seja, como se teria que ler a fronteira de Debray, a descoberta de Debray. Como se cruza isto, não? Alguém que sai daqui – creio que está no texto –, da escola normal daqui e vai para lá. E o outro que vem da Ecole Normale Supérieure e toda a historieta e que se cruzam em Cuba. E a sedução de Cuba. Mas sobretudo, mais que a presença de Fidel, a presença de Che. Aí este descobrimento – descobrimento que depois lhe serve ou lhe dá apoio para aderir também à revolução nicaragüense. Eu poderia dizer-lhe bruscamente: ele de política não entendia nada. Politicamente não tinha categoria. Se virava legitimamente em termos de visão, simpatia, etc. Eu vi um filme sobre ele em que, visto daqui e naquele momento, você pode tomá-lo como um revolucionário. Houve toda uma adesão, que foi muito ampla e que muita gente teve, inclusive Debray, e que incluiu as dois no processo inicial da revolução cubana e os iluminou, os favoreceu. Nem te conto o problema com Debray agora... Era um homem de boa vontade, Julio.
JW – Como você vê o caso de um escritor argentino atual que está na França, como Juan José Saer?
Viñas – Saer, sem dúvida. Mas este circuito creio que se acaba com Cortázar. Porque Cortázar o estende ao máximo. Note que o seguinte é o bom Héctor Bianciotti, a quem fazem acadêmico na França. Para mim isto é um emblema: a prolongação da viagem – daria para fazer um ensaio – da viagem de Cortázar e da coisa cortaziana, incluindo a Saer, é que te façam acadêmico, imortal. A não ser que se goste disso... – Se gosta, vive tua vida. Mas que te transformem em acadêmico... Termina com a imagem de Claudel, ou quem? De Corneille? Ou quem vem, o cardeal Richelieu? Que loucura, o que estou fazendo aqui? É um delírio, é um carnaval isso. Bianciotti creio que é o complemento, te repito, da viagem de Cortázar. É quase sua redução ao absurdo. Note: recém-soube que Mario Vargas Llosa foi feito acadêmico na Espanha.
JW – Previsível neste caso, não?
Viñas – É um circuito. Em que mais dá isto? Tudo implica em que te façam acadêmico. Nessa zona eu não entro. Mas no caso de Saer, creio que é uma espécie de prolongação, de sobrevivente. Ele escreve para a Argentina. A quem interessa o que ele escreve? Pode ser que nas cátedras de literatura latino-americana. Mas como presença de escritor, de um tipo que faz alguma coisa, é aqui. Você pode recuperar sentido, e sentido de tudo o que faz, de seus textos, e toda a história. Quem sabe em outro lado, mas lá? Pode ser que lhe digam: - Muito bem, este escritor argentino... é um meteco! Ou não? Porque a culminação disso é Cortázar. Depois disso, este tipo é um meteco, ou te fazem acadêmico. Francamente, isso de mteco não me convence: não, olhe, isso me deixa mal. E que me transformem em acadêmico, francamente, é a melancolia. É outro projeto, não? Te proponho: consiga o número da revista de Sartre, Temps modernes, que foi o número que fizemos dedicado à Argentina. É de 1981. Aí também falamos de Sartre. Mas dizemos: - Mestre não, que mestre? Companheiro! Ou seja, de que vamos falar aqui? Da relação com os franceses? – Não, querido, colonialismo não, nem louco! Não me interessa o Gómez Carrillo, não sei quem, Elísio de Carvalho da literatura brasileira. Sei lá, os cronistas de Paris de mil e... Não me interessa, francamente, não. Digo da época, e muito menos agora. Bianciotti é um fantoche, pobrezinho. Faz um ano vi uma comédia francesa chamada “El fraque verde” que era toda uma historieta sobre os acadêmicos. É um pouco assim isto: tem que colocar o fraque verde, não te parece? Pode ser que goste e se gosta, está bem. – Se está bem, querido, vive tua vida, coloque um verde e um violeta. Mas como decisão de vida! Você escreve ou o que faz? O que é? Cartão de visita, de fim de ano? – Queridos meus, está bem, saúde! É uma decisão, não?
JW – Você atribui a Cortázar, como a Borges, o defeito de “poner limites a los otros” a partir da zona sagrada e inexpugnável de “su cabina de escritor supertécnico”. O que devemos entender como seu oposto, como uma literatura aberta, em sua opinião?
Viñas – Walsh, para nos entedermos rapidinho, rapidinho. Aí o paradigma de escritor. Excelente contista, tem três ou quatro contos... – Julio, por favor, leia Walsh, velho! Olhe: “Nota al pie”, “Esa mujer”, “Irlandeses detrás de un gato”, “Fotos”, mas sobretudo “Esa mujer” e “Nota al pie” são contos internacionais. Em “Irlandeses” é muito evidente a incidência da coisa joyceana, que não está mal – Joyce naquele momento, sim. Diante de “Nota al pie” e “Esa mujer”, você diz: - Aqui tem um grande escritor”! Você diz: - Como dá conta de todas as coisas! O que lá estava enunciado, no melhor dos casos, aqui de imediato, concretamente, a coisa se materializa, não há saída, não? É outro modelo de intelectual, creio que fundamental. E Walsh, olhe: um pedinte que andava por aqui, te pedia vinte centavos para pagar o café com leite. “Esa mujer” é Eva, que não se nomeia. Digo, para lê-lo antagonicamente a um best-seller, totalmente mercantilizado que é Santa Evita. E todas Evitas que se está fazendo. O filme, você não imagina a bobagem a respeito desta figura – que é preciso desmontar em termos políticos muito concretos e aí ver de que estamos falando. Vargas, ou quem te dê ganas, Pedro II, quem era este tipo? Falemos sério, digamos, Prestes também. A mim não enternece mais. Digo quando da coluna, não depois – pobre, sei lá, envelheceu. Mas então era preciso dizer-lhe: - Pare, velho! Estava louco... Sobre Walsh, é outra aposta, menos mal que existe Walsh.
JW – Você deu uma entrevista à revista Hispamérica em 1972 que provocou uma resposta de Cortázar. Referia-se a sua condição de escritor na “torre de marfim” em Paris. E então Cortázar diz em tom autocrítico que não está em Paris para santificar ninguém “sino que me ahogaba dentro de um peronismo que era incapaz de comprender en 51, cuando un alto-parlante em la esquina de mi casa me impedía escuchar los cuartetos de Bartók”.
Viñas – Está bem, Julio! Ele era assim. Mas isso é definidor, é quase caricaturesco. – Está bem, Julio, já não pode ficar. Vale dizer: não à música, está bem. Tratava-se de compreender o que passava, até onde o esforço de compreender o que passava com o processo peronista, que era muito complicado – tão complicado como pode ser o processo do trabalhismo no Brasil. – Mas isso quer dizer que você está feito, amassado por esse tipo de coisa. – Você opta por uma posição que implica uma coisa elusiva, muito tradicional, tradicionalíssima, que é ir para Paris, pronto! De repente, de Paris, fulgura uma coisa revolucionária, como certa história. O descobrimento se dá de lá. No entanto há aí um jogo em duas faixas. – Julio, como é essa história? A coisa contraditória: - Que imagem você tem do processo revolucionário?, com todas suas limitações, desde já. Este processo histórico tenho que entendê-lo, pelo menos para um intelectual que queira ser lúcido. Vou a Paris e depois então de lá adiro à revolução cubana – que aparentemente tem uma prolixidade – porque se declara marxista-leninista. E veja, o processo da revolução é uma coisa contraditória, muito contraditória. Evidentemente, e desde já, não é um teorema, é todo o pacote que está metido aí dentro. Não é diagramar simplesmente um conto, é toda uma complexidade fenomenal. – Está bem, Julio... Mas como é a história? O que descende... o bom senhor Bianciotti, a redução ao absurdo de Julio – e creio que é uma redução ao absurdo. E em que medida também Debray é uma redução ao absurdo, hoje. – Porque, Debray, querido, eu te conheci em Havana. Teu livro Revolução na revolução?, o atiramos por baixo da porta, no hotel. Nesse momento era fenomenal estar em Cuba. Mas quando o vento vem contra, já nem tudo é tão certinho, nem tão nítido, aí você toma distância. – Perdão, Régis!...
JW – A propósito, como você vê Cuba hoje?
Viñas – Como um pacotão fenomenal, imagine! Eu resgato um elemento: aí está o Papa. Note você com que companhia vou. Digo-lhe: - Velho, este paisinho, que é “isto” pensando em termos de Brasil, agüenta os companheiros norte-americanos. Vindo de onde vem, com as limitações fenomenais, com todas as carências internas, note que não o transformaram, não puderam transformar – o que teria sido o ideal – Fidel Castro em um narcotraficante, dizendo que tinha um harém de putas ou que estaria vinculado à “branca” colombiana. Se não o fizeram é porque não lhes deram essa possibilidade. Eu não voltei mais a Cuba. Fui em 1981 e tive um problema muito sério com os cubanos porque não nomeavam a ditadura argentina. Foi uma discussão, da qual foi testemunha o bom Osvaldo Soriano. Enfim, se eu fosse religioso, te diria: “que deus os ajude”. Não se pode ajudar... E como bancar-se frente ao bom Clinton e toda a alcagueteria, a lei esta... Eu não voltei, apesar dos vários convites. Inclusive, isso de estar como turista convidado e o povo aí que não tem nem para almoçar, não me convence. Uma relação distante. Quando há uma coisa tão arbitrária como o bom Sumo Pontífice. Me parece uma injustiça fenomenal que sigam fazendo isto, sem dúvida. Não sei como vão sair. Quem sabe se ponham meio místicos. Que deus os ilumine. Não sei, velho, francamente não sei...
JW – Gostaria que falasse um pouco dos anos da revista Contorno (1953-1959).
Viñas – Era uma coisa de garotos, velho...
JW – Minha questão talvez seja mais perene. Você escreveu que Sarmiento explica a Argentina...
Viñas – Evidentemente que era um burguês lúcido, justo calhou o momento. E note que é um intelectual que chega a ser presidente da República. É preciso ler sua correspondência com Pedro II. Está na Correspondência, é uma maravilha, uma maravilha. A sedução pelo Jardim Botânico... As palmeiras daqui da Praça de Maio, ele as trouxe porque viu as palmeiras no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, você sabia? Quero dizer, como condensação, Facundo é uma jogada essencial da burguesia de 1850. Porque é uma coisa muito lenta. Para entender esta jogada, é preciso ler a coleção completa de El alma que canta, que era uma revista popular. A semente, o burguês que vê a semente. Digo, como manipula, como faz. É um burguês conquistador, sim.
JW – Sarmiento explica de alguma forma a Argentina e a proposta do grupo Contorno era também, em sua teoria da cidade, explicar o país.
Viñas – Ricardo Piglia diz uma coisa que eu resgato. Estou distanciado dele, mas creio que isso está certo. O delírio secreto dos escritores argentinos – aqueles que não querem fazer simplesmente best-sellers – é escrever o Facundo do século XX. O que seria no Brasil? Alguém que escrevesse Os sertões. Porque o delírio é ver como encontrar o velho Borges, o do Aleph. É um pouco isto a relação em Contorno. Mas, imagine: um pouco à base de improvisação, de intuição. Como logramos, como se diz no bairro, encontrar “la madre del borrego”. Se diz no Brasil “la madre del borrego”? A chave. “Borrego” é a ovelha cria.
JW – Sim, o cordeiro.
Viñas – Claro, o cordeiro, para ver como encontrar a chave disto. Te diria, o velho Sarmiento, sem dúvida e desde já. E tudo o que queira. Por isso continuamos discutindo. Digo: tem vigência. O resto... Talvez a fantasia de Contorno fosse isto. E sim, já que se joga, vamos fazer Os sertões. Digo: era jogo. E por aí, não sai, para sorte! O Macunaíma, não sei, algo assim.
JW – Sua leitura da literatura argentina é feita pelo viés da viagem à Europa. Qual a importância desse tópico, hoje e antes?
Viñas – Quem sabe o ponto de partida inevitável aí tenha sido o de Sarmiento, a viagem de Sarmiento. O momento anterior está ainda impregnado de uma coisa colonial. A viagem em direção a Madrid, por um critério um pouco administrativo. De imediato, sempre está a idéia da viagem como um bumerangue. Se vai até lá com vistas a voltar, ou seja, a santificação inerente a isto. E já aí a possibilidade de uma certa periodização e de rasgos definidores, distintos. Sobretudo, talvez, no salto ou na passagem do modelo Sarmiento – o burguês com uma perspectiva muito de construção de um país, não? E, no caso de Sarmiento, ele corrige sua viagem à Europa e passa nos Estados Unidos. Ou seja, ele se sente muito desconforme, sente que a coisa é muito a decadência – as relações que estabelece com algumas pessoas de lá antes o desanimam. Ele recupera então um enorme, quase delirante entusiasmo pelos Estados Unidos. E, de fato, o modelo passa a ser Estados Unidos, sobretudo no campo pedagógico. O que não descarta que o eixo europeu, e particularmente França e Paris, lhe sirvam como apoio de seus projetos, inclusive pessoais. Por outra parte, cultiva uma espécie de desembaraço. Ele leva o Facundo para abrir seus contatos na Europa, além de publicá-lo. E ele já está como que acumulando, com sua viagem aos Estados Unidos, que é complementar, imediatamente: 45, 46 e já em 47 está nos Estados Unidos. Como acumulação de sua fantasia de presidente da República.
JW – Cento e cinqüenta anos depois, como você encara o predomínio cultural norte-americano?
Viñas – Me parece obsceno tudo o que seja a cultura norte-americana da televisão. Francamente, não me interessa. Não me propõem Faulkner. Não me propõem o grande jazz norte-americano, nem o grande cinema. Me propõem um cinema que é a idiotice. Digo, isto é o que solicita um público norte-americano. Não sei, seria preciso analisar muito atentamente como funciona uma produção deste tipo em função de determinado público. Eu não o tolero. E quero além do mais que as pessoas não o tolerem... Pelo menos na zona em que se pode ter certa incidência cultural e política. Me parece uma imbecilidade. E é uma proposta de uma homogeneização que pressupõe, sobretudo, isto: um achatamento fenomenal, entre outras coisas, não diria já por um problema de alta especulação, senão simplesmente porque me entedia. Vejo esta produção, leio a última produção literária norte-americana em geral. Acabo de ler, faz uma semana, uma coisa chamada Trilogia de Nova York e já nem lembro o nome do autor. Me parece uma idiotice. Digo, disto francamente vocês mesmos têm que se dar conta! Bem, isto em função dos clássicos, sei lá, Melville ou Thomas Wolfe. Isso talvez seja o ponto de partida, não tanto como resultado de uma honrosa reflexão, senão uma coisa de tipo visceral.
JW – O que significa o exílio na tradição cultural e política argentina e na sua própria trajetória?
Viñas – Para a geração fundacional – Sarmiento, Echeverría, Alberdi e outras figuras – o exílio é a mitificação do país, a nostalgia do país, a identificação do país com uma mulher, com o amoroso, a correspondência, esse lugar dos afetos. Quem sabe se poderia contribuir pessoalmente com isso. De 76 a 83, quando da ditadura militar, eu pessoalmente fui exilado. Mas, na verdade, só do que posso falar um pouco é de Buenos Aires – o prolongamento do corpo, o conhecimento, os tons de linguagem, não? É de uma complexidade fenomenal. Sim, perfeito, São Paulo ou Rio de Janeiro, o que seja. Mas a densidade disto, não? Digo pensando no exílio. Essa densidade em direção a uma corporeidade é minha densidade. No exílio verifico esse assunto, isto é, no exílio recorto e focalizo no que implica isto que pode soar como uma abstração metafísica da identidade. Está bem, é o pouco que eu sei, do pouco que eu posso falar, do meu corpo, minha corporeidade. E não creio que tenha o monopólio para nada disto. Claro que se pode aspirar à nostalgia, se pode ir para uma mitificação, se pode ir a negócios certamente – porque disto nem se fala, tango, Gardel e tal. Eu não sou, especialmente, um traficante disto...
JW – No embate entre as correntes críticas de Angel Rama e de Emir Rodríguez Monegal, quem sobrevive hoje para você?
Viñas – Angel! Angel tinha uma paixão por tudo isso e tinha uma grande dignidade, como intelectual e como pessoa. Monegal creio que se transformou em um burocrata da cultura universitária norte-americana. Eu o encontrei no México e notei que havia perdido tudo, já era uma espécie de professor norte-americano convencional. Angel tinha uma capacidade de ver globalmente. Porque, em sentido contrário, digamos, Monegal tinha uma grande capacidade analítica. Mas com Neruda e Quiroga faz um biografismo mais que tradicional. Joga com uma psicanálise de grupo folclórico... E a idiotice do bom de Vargas Llosa, quando escreve um livreto sobre Flaubert? Chegou aqui com isto quando o velho Sartre havia escrito o guia telefônico sobre Flaubert. – Mario, por favor!, peruano do Peru, fique quieto! Olhe o que é este trabalho, é um delírio. Simplesmente um homem com essa capacidade analítica que se põe a decifrar um outro homem. Digo, Monegal... Parecia ter muito mais uma capacidade dramatizadora, Angel. E a capacidade de ver, que creio que é o mais resgatável dele. Desde elementos não retóricos, não convencionais de coincidências de culturas na América Latina, o que passa na cidade.

sábado, 12 de marzo de 2011

David Viñas





DAVID VIÑAS: EL ÚLTIMO DUELISTA


Por Edgardo H. Berg



Tengo sobre mi escritorio el último libro que dirigió David Viñas, De Alfonsín al menemato (1983-2011), volumen colectivo en el que tuve la dicha de participar con un ensayo, y que retoma las preocupaciones y el proyecto iniciado en 1989, por Viñas, de construir una historia social de la literatura Reviso el libro y la noticia de la desaparición física del autor me lleva al pasado, o mejor, al presente del pasado.
Hacia mediados de los ochenta, todavía devoto y entusiasta lector de poesía y narrativa europea y norteamericana, comencé a leer un libro que me cambió radicalmente mi indolencia y desdén como estudiante universitario. Cursaba Literatura Argentina en la Facultad de Humanidades, en el viejo edificio de Maipú y Marconi, y la lectura de Literatura Argentina y realidad política (1964) de David Viñas me despertó como un puño golpeando mi cráneo, como diría Kafka en su Diario, y viró radicalmente mi modo de pensar y analizar la cultura nacional. Creo que a partir de ahí, comenzó mi interés por la literatura argentina y la crítica, mejor dicho en ciertas forma de la crítica, antes de pasar por T. W. Adorno, Walter Benjamin, Bajtín o Barthes, Rosa, Ludmer, Sarlo o Piglia. El libro planteaba, a través de una serie obsesiva de metáforas y de motivos de transporte, la ineludible relación entre la constitución y el desenvolvimiento de la literatura nacional y la política, las analogías y correspondencias entre la serie cultural y la serie histórica, entre teoría política y praxis artística, siempre vistas desde una posición ética e ideológica que iba del análisis textual a los posibles entreveros y cruces con los acontecimientos y determinaciones epocales. El libro se apartaba claramente de la crítica tradicional que ocultaba, en la mayoría de los casos, las determinaciones ideológicas y políticas de la cultura. Más o menos sobre la misma época que cursaba en la Facultad, mi interés se traslado del ensayo a la obra novelística de Viñas, en particular, sobre Dar la cara (1962), que de un modo emblemático condensaba los debates ideológicos y culturales de la época del frondizismo. Junto con un amigo de Letras y dos compañeros de la carrera de Historia intentamos plantear, siendo todavía alumnos, un proyecto que abarcara el contexto de esa época, la revolución cubana, la relación entre los intelectuales y el gobierno de Frondizi, el peronismo, vistos desde la producción literaria y cinematográfica; y, por supuesto, como suele ocurrir con los primeros e iniciales proyectos, que suelen ser los más apasionados, fue rechazado por las autoridades de investigación porque no permitían proyectos grupales de alumnos.
Más tarde leí su otro gran libro de ensayo Indios,ejército y frontera (1982), texto escrito en su exilio y que es, creo yo, el mejor homenaje que hizo en vida el autor a sus hijos María Adelaida y Lorenzo Ismael, secuestrados y desaparecidos por la última dictadura militar. De un modo, si se quiere alegórico o translaticio, une dos contextos históricos y traza un paralelo, admirable, entre los orígenes y la constitución del Estado nacional y el autollamado Proceso de Reorganización Nacional, a partir de la espacialización de la soberanía política y su consecuencia: el genocidio. Bajo el terror estatal los sujetos sociales pueden ser despojados del territorio que habitan o expulsados, cerca de los alambrados electrificados de los Centros de Exterminio.
Podríamos decir que la obra de David Viñas, su obra ensayística y ficcional, nos sumergen al mundo silente de las entrañas del poder (del poder militar, del poder económico o político), quiero decir nos sumergen en las vísceras de la realidad y la historia argentina; de ahí su voluntad de estilo “visceral”, su desborde verbal que no tiene pelos en la lengua. La posesión de la palabra, como se suele decir, es un cuchillo de doble filo, peligroso y comprometedor. La voluntad de estilo, la fuerte entonación, polémica y virulenta, la gestualidad del cuerpo de su escritura entra en correlación con el efecto de marcación de la voz, con la ineludible identificación entre el sujeto de la enunciación y el sujeto del enunciado. No se trata de un juego de doble paño, ni de engolar la voz. Ni chicha ni limonada. Dar la cara. Mostrarse y demostrar. Poner el cuerpo –el cuerpo de la escritura-. Frente a la ortodoxia y los desmanes del intelectual devenido en funcionario del Estado, el cuestionamiento. La verdadera predicación de David Viñas siempre será vehemente, molesta, inoportuna. Como dijo alguna vez el propio Viñas de Roberto Arlt, su figura de autor se asemeja a un parlamentario “que denuncia automáticamente todas las reglas del juego y por eso golpea, patea, despotrica y termina por pegarle al referí”. Lo que persiste en sus textos, más allá de los contextos de enunciación y sus formulaciones discursivas, es una voluntad nacional, un cuerpo a cuerpo con la historia argentina.
Si me apuran, digo: David Viñas, el último duelista.


Nota extraída del blog: http://salierishistoria.wordpress.com (sección “Palabras transitorias”)

)